O dilema das Redes: análise do documentário a partir da Psicologia Social

 



ENSAIO SOBRE O DOCUMENTÁRIO O DILEMA DAS REDES: COMO AS NOVAS TECNOLOGIAS ESTÃO IMPACTANDO A ELABORAÇÃO E TRANSMISSÃO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A POLÍTICA?


Introdução ou primeiros passos: “com-unidade”

Do outro lado do mundo um vírus se apropriou do organismo de alguém, que passou para alguém, que passou para alguém, que passou para alguém... e, de repente, tão aqui, tão presente, tão perto de nós. Um mínimo esforço cognitivo e é possível pensar em alguém muito próximo que adoeceu, que está doente ou que não resistiu à doença. “Estamos conectados”, é o que aprendo. No momento em que me sento para escrever este ensaio, os registros apontam para algo em torno 617 mil brasileiros mortos por Covid-19. Estamos todos conectados.

Tem uma teoria na psicologia que diz que são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer NO MUNDO estejam ligadas. Não sei se acredito, mas fiquei me perguntando de que modo estas 617 mil pessoas estariam conectadas comigo… nunca um período foi tão físico e tão virtual ao mesmo tempo como estes últimos tempos pandêmicos e isto nos revela este duplo modo de estarmos uns com os outros. Nós estamos todos conectados.

Não é de hoje que andamos em bando. Há bastante tempo caminhamos assim. Este caráter de conexão naturalmente humano, de grupalidade, ou, para fazer uma imagem, de “teia”, que nos representa tão bem, forma um cenário precioso de estudo para a psicologia social. “De que maneira construímos a realidade individual e coletiva, uma vez que estamos todos conectados, vivendo em sociedade?” É uma pergunta inquietante por si só e torna-se ainda mais se pensarmos o advento da internet e das tantas possibilidades que foram abertas para nós a partir disso. Ainda mais conectados? Mais redes na teia, mais formas de se ligar. Que implicações isso pode ter para a construção da “nossa” realidade?

Atravessando um pouco essa discussão e abrindo também outras, o presente ensaio visa lançar algumas reflexões a partir do documentário “O Dilema das Redes”, de Jeff Orlowski. De forma geral, objetivando talvez mais perguntar que responder, mais refletir do que concluir. Para tanto, está dividido em três partes principais: (1) um pequeno resumo do documentário; (2) uma reflexão sobre o filme a partir das representações sociais de Moscovici, teoria escolhida para ancorar e refletir sobre o tema e, por último (não será feito um detalhamento ou exposição da teoria, dado o objetivo, mas alguns recortes) e (3) uma conclusão crítica sobre o filme e sobre a tematização feita por ele, sua construção e possíveis problemas.

 

Parte I - Dilema das Redes

O Dilema das Redes é um documentário lançado no serviço de streaming Netflix em 2020 sob a direção de Jeff Orlowski e tematiza o imenso impacto das redes sociais na humanidade, tanto em termos psicológicos quanto em termos políticos e sociais. O “docudrama” constrói um enredo que pode ser dividido em duas partes principais: (1) uma crítica acerca do uso das redes sociais a partir de entrevistas a profissionais e ex-profissionais de grandes empresas como Facebook, Twitter, Instagram e Google (entre outras) nas quais estes relatam informações privativas acerca das articulações internas e das intenções empresariais existentes nos “bastidores das telas” e (2) uma ficção paralela que apesenta o drama de uma família estadunidense em torno do vício nas telas.

A narrativa vai se construindo e se estende a partir desses dois pilares, ganhando forma até chegar em discussões sobre a influência das redes nas eleições dos Estados Unidos, a extração de dados e categorização deles em um sistema com um propósito manipulador, e, sobretudo o problema mundial que isso tudo pode representar na medida em que o uso das redes vicia, condiciona e objetifica o ser humano, tornando-o um mero produto, alienado de si mesmo.

Parte II – As redes e as representações socais

O documentário faz referência a um modo de viver da sociedade moderna o qual tem se servido em termos de comunicação, produção e consumo cada vez mais dos/nos espaços virtuais. O excessivo consumo das telas (seja pela via de consumir, de fato, ou de ser consumido) revela para nós um modus operandi que, no mínimo, pode nos levar a pensar: quais valores têm regido nosso comportamento grupal? O que faz com que pensemos e ajamos dessa maneira coletiva?

 Para minimamente nos aproximarmos de respostas, um caminho teórico que talvez possa iluminar um pouco este contexto talvez seja a ideia de representações sociais, apresentada por Moscovici. Para ele, a Representação Social “é uma construção que o sujeito faz para entender o mundo e para se comunicar” (Crusoé, 2004) a partir da variação e da diversidade das ideias coletivas nas sociedades modernas (Moscovici, 2007).

Dito de outra forma, as representações sociais são as lentes através das quais olhamos, organizamos e atribuímos sentido ao mundo para então podermos comunicar estes sentidos com os outros. Afinal, como sugere Abric (2001) a realidade objetiva não existe. De fato, não existe. O que existe é uma representação através da qual podemos imaginar o mundo e então representar de novo, integrando tudo isso num sistema de valores que se transforma e se (re)apresenta de acordo com uma história e um contexto (Morera, et al., 2015).

Sob a perspectiva da representação social, a comunicação é o fenômeno através do qual uma pessoa influencia outra que, consequentemente, pode fazer o mesmo com uma outra pessoa. (Alexandre, 2001). Em se tratando de redes sociais ou mundo virtual, é inevitável pensar o bombardeamento de ideias a que somos submetidos nesses espaços. As fake news estão aí para ilustrar bem um pouco disso, tema que é inclusive discutido no documentário e que pode nos fazer refletir sobre a liberdade e o perigo que é ocupar um espaço onde qualquer um pode criar e lançar uma ideia, seja ela absurda ou não. Outro exemplo bom para ilustrar as representações sociais e como elas se formam e nos atravessam são os terraplanistas que, cada vez mais, crescem nas redes sociais. As representações sociais são, em resumo, uma teoria, porém não precisam necessariamente de comprovação científica ou de teste empírico, se formam no senso comum.

Ainda nesta perspectiva, Amaral (2005) traz uma discussão interessante:

Nas sociedades contemporâneas ocidentais, pode-se afirmar que o papel dos mitos e crenças das antigas representações coletivas foi substituído pela ação dos meios de comunicação de massa das atuais representações sociais na construção da realidade. O senso comum deixa de ser constituído somente pelo mito e passa a se basear na mídia, em primeiro lugar (Amaral, 2005. p. 14)

A mídia, sobretudo por meio das redes sociais, tem ocupado cada vez mais o “lugar de saber” ou a “fonte de informação”. Uma vez que é nas interações sociais que as representações são elaboradas e transmitidas, é a partir desse contexto que construímos uma realidade coletiva virtual e literalmente. E que realidade pode ser essa? A que consequências isto pode nos levar? A nível Brasil, por exemplo, talvez a seguir mantendo uma massa conservadora? As nossas eleições foram atravessadas completamente pela realidade virtual, pelo ciclo de representações sociais construído quase como um projeto midiático.

Parte III – Inconclusões

Dessa forma, a mídia, arquitetada por um grupo de especialistas formadores e sobretudo difusores de representações sociais é “responsável pela estruturação de sistemas de comunicação que visam comunicar, difundir ou propagar determinadas representações” (Alexandre, 2001).

Uma mídia com imenso alcance (como as redes sociais, por exemplo) desprovida de verdade ou de ciência, que está a favor de quem pode pagar para construir narrativas nos coloca em um complexo meio de construção social. Um certo grupo detém o poder e o mantém. E é exatamente neste ponto que o filme O Dilema das Redes acaba deixando a desejar. A questão do capital parece não ficar tão evidente, ao menos não em um nível mais profundo. Discute-se, por exemplo, em um certo momento a extração de dados dos usuários, o controle, quantificação e utilização disso, no entanto não se faz um link disso com a discussão capitalista, por exemplo. Este é um desenho perfeito do capitalismo.

Em certa medida há uma denúncia do status quo mas aparenta fazê-lo mais  provavelmente para reforçá-lo (citação) do que para de fato construir uma discussão politicamente mais ampla. Na análise de Da Fonseca (2021):

Como  resposta  a  críticas  sobre  o modelo  de  negócios  adotado  deliberadamente  de  diversas  empresas  de  tecnologia,  o  filme oferece  uma  suposta  ‘vida  secreta’  dos  algoritmos,  e  não  a  evidência  de  que  sistemas  e tecnologias  são  desenvolvidos  em  (e  para)  um  determinado  sistema  econômico-político, cujos  valores  e  modos  de  operação mereceriam  criterioso exame. (p.15)

Por fim, conclui-se entre várias coisas que: (1) o documentário oferta inúmeras discussões importantes para o cenário em que vivemos e que (2) à luz da psicologia social podemos entender um cenário preocupante politicamente; (3) que as redes sociais são uma forte difusora de representações sociais, (4) que é preciso que se reflita a serviço de quem isso tudo está e, por último, (5) que o filme embora teça considerações importantes sobre o capitalismo, não aprofunda a discussão, desviando um pouco da crítica política necessária para uma construção mais ampla de ideias que possam representar melhor o cenário desigual que estamos imersos.

 

 

Referências

Abric J.C. (2001) Prácticas sociales, representaciones sociales. México D.F: Ediciones Coyoacán.

Alexandre, M. (2001). O papel da mídia na difusão das representações sociais. Comum, 6(17), 111-125.

Amaral, R. M. D. (2005). Representações sociais e discurso midiático: como os meios de comunicação de massa fabricam a realidade. Revista Lâmina, 1, 1-15.

Crusoé, N. M. D. C. (2004). A teoria das representações sociais em Moscovici e sua importância para a pesquisa em educação. Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, 2(2), 105-114.

Morera, J. A. C., Padilha, M. I., Silva, D. G. V. D., & Sapag, J. (2015). Aspectos teóricos e metodológicos das representações sociais. Texto & Contexto-Enfermagem, 24, 1157-1165.

Moscovici, S. & Pérez, J.A. (2007). A study of minorities as victims. European Journal of Social Psychology. 37. 725-746. https://doi.org/10.1002/ejsp.388.

Vergara Quintero, María Del Carmen. (2008). La naturaleza de las  representaciones  sociales. Rev Latinoam  Cienc Soc Niñez Juv. 6(1):55-80.